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Poemas pousados em arte
ÉCFRASES
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POESIA E PINTURA
Este livro contém poemas meus e imagens de pinturas e outras obras de arte nas quais eles se inspiraram.
Os poemas são exemplos do que se chama, eruditamente, écrases. Uma das boas definições de écrase é “poema que fala de uma pintura ou outra obra de arte, real ou imaginária”.
Pintores e pincéis, poemas e versos, são o meu ofício e o mundo com que vivo e convivo, tão próximo quanto meu relacionamento com os outros seres humanos e a sociedade.
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Voltemos um pouco atrás no tempo.
Desde adolescente desejei ser pintor.
Comecei limpando pincéis de alguns pintores e artistas. A primeira vez que peguei num carvão foi no ateliê de um pintor brasileiro, Waldemar da Costa, que morava em Lisboa, onde eu também morava, com meus pais. Voltando ao Brasil, fiz gravura na Escolinha de Arte do Brasil, com Marília Rodrigues: eram lindas as placas na bandeja de ácido, cobertas de pequenas bolhas, limpas com uma pena, mágica a imagem no papel saindo da prensa.
Naquela época, a pintura abstrata parecia ser o caminho final e definitivo da pintura. A evolução da obra de Picasso talvez indique esse impasse, por ele magistralmente resolvido, mantendo sempre a figuração, ainda que deformada e reformada. Também Cícero Dias (que conheci em Paris e gostava de meus desenhos), que começou sua obra de grande pintor com uma arte algo surrealista algo ingênuo, e evoluiu para uma abstração repetitiva, tendo depois que tentar voltar em seu próprio tempo, quando se deu conta do equívoco (aliás, ele tinha muito orgulho de ter o telefone de Picasso registrado em seu nome, por conveniência do pintor espanhol).
Mais tarde, eu ia no ateliê de Djanira, em Santa Teresa; era perto de minha casa, e ia a pé. Frequentei também a oficina de Abelardo Zaluar. Assisti a cursos de restauração e conservação de Edson Motta, na Escola de Belas Artes. Mais tarde ainda, vi Carlos Scliar pintar em sua casa ateliê de Cabo Frio.
Não encontrava então, porém, um curso atualizado de artes plásticas, como há vários hoje (aliás fruto da multiplicação das universidades brasileiras); a Escola de Belas Artes se encontrava ainda no tempo do neoclassicismo da Missão Francesa.
Inseguro de meu ofício, tive então a grande fortuna de poder ir estudar em Nova Iorque. Ali fiz um mestrado em pintura, na Universidade de Nova Iorque, que fica no centro do Greenwich Village, junto ao Soho. Entre seus muitos cursos passei um verão em Veneza onde, no muito antigo convento de Tolentini, fiz desenhos de grande formato. Em Nova Iorque, pintava num grande ateliê da Universidade, em andar com pé direito muito alto, de um prédio/armazém entre o East Village e o Soho, com o chão, as paredes e as divisórias encardidas de tinta multicor, e pintava telas bem grandes. Convivia com pintores e ateliês (“studios”). Vários de meus colegas se tornaram ótimos pintores. Também através da universidade, fui aprendiz de Sandro Chia, excepcional pintor, escultor e gravador italiano, em cujo ateliê vi de perto a arte do grande capital. Em outro curso, este da universidade de Eastern Michigan, passei um verão e um outono. Um curso itinerante de literatura, arte e história, que começou em Bruxelas e Londres, e terminou no Egito antigo (20 países, mais de 50 cidades); atravessei a Europa estudando arte, e visitamos a maioria dos principais museus europeus: Paris, Bruxelas, Escandinávia, Rússia, Europa oriental, Alemanha, França, Itália, Grécia. Vimos também os monumentos, a arquitetura e as próprias cidades, que são também uma grande obra de arte, como me ensinou meu posterior orientador do PhD e amigo, Marshall Berman. Sim, fiz um PhD em história da cultura, tanta a insegurança.
Em Nova Iorque fiz algumas exposições individuais e participei de coletivas, no Village e no Soho (onde há mais de 400 galerias: nos Estados Unidos e na Europa é mais fácil ganhar a vida com arte ou literatura, uma vez que a arte está mais integrada ao sistema de produção econômica, e é muito mais consumida, as oportunidades são muito maiores.
Mais tarde fiz também, de volta ao Brasil, exposições individuais de pintura e de desenhos no Rio de Janeiro, Brasília, Roma e Lisboa (só numa delas tiver emoção de vender todos estes trabalhos).
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Mesmo com essa muita bagagem não dediquei o tempo que gostaria em realizar meu sonho de pintar e ser pintor.
Dediquei a maior parte do meu tempo a literatura e a pesquisa em história na Casa de Rui Barbosa. Até hoje não publiquei minha tese de doutorado. Gastei muito tempo para conseguir publicar a poesia e prosa completos de meu pai, Odylo Costa, filho, e o teatro completo de meu tio Francisco Pereira da Silva.
A poesia — na própria poesia, na pintura e na vida — fez de mim o que quis.
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Quantas imagens em meus tão impressionáveis olhos. Algumas permaneceram tanto tempo. Vi tantas vezes a poesia passar de quadros e esculturas para poemas que descrevem ou falam sobre, ou imitam, obras de literatura. Quantos poemas não foram inspirados pelo Grande Sertão: Veredas ou nos poemas de Homero, ou nas páginas na própria bíblia, se a entendermos como literatura?
Poemas descrevendo ou transformando obras de arte reais ou imaginárias.
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Voltamos aí às tais écfrases. A descrição de uma pintura outra obra de arte real ou imaginária, como diz a definição. Há muitas delas.
A primeira foi o famoso e lindo escudo de Aquiles, descrito minuciosamente por Homero, na Ilíada. Ao longo do tempo, encontra-se écfrases em todas as literaturas.
São muito conhecidos o Moisés de Miguel Ângelo analisado por Freud, e a lindíssima descrição/análise que Michel Foucault faz de Las Meninas, de Velásquez, em Les Mots et les Choses, vendo-o como uma metáfora da história moderna. Para mim, porém, a mais significativa delas não é nem uma nem outra.
A que mais me fala é o soneto Torso Arcaico de Apolo, de Rainer Maria Rilke:
Torso Arcaico de Apolo
(tradução de Manuel Bandeira)
Não sabemos como era a cabeça, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porém
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
só que meio apagada a luz do olhar, que salta
e brilha. Se não fosse assim, a curva rara
do peito não deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.
Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
pedra, um desfigurado mármore, e nem já
resplandecera mais como pele de fera.
Seus limites não transporia desmedida,
como uma estrela; pois ponto ali não há
que não te mire. Força é mudares de vida.
O fecho do soneto, “força é mudar de vida”, é para mim a melhor definição do que é arte, a essência da arte. Ou seja, aquele momento no qual, como me ensinou Emanuel Carneiro Leão, a imanência se torna transcendência, quando você altera a sua compreensão da vida e do futuro, pois a partir daquilo que vê, você já não é mais o mesmo. Força é mudar de vida. Obedeço.
Certa vez, na oficina de poesia do grande poeta americano Galway Kinnell, dei uma sugestão, um exercício: uma linda aluna sentou-se para posar para o grupo. Não para ser desenhada ou pintada, mas para ser tornada poesia; os resultados foram originais e emocionantes; a emoção “amorosa” de cada um se transformando em emoção estética.
Todo poeta, ao falar da vida, sua ou de outros, da natureza, ou mesmo das idéias, da linguagem ou das próprias palavras, não está, de certa maneira, transformando o que vê ou sente, ou pensa, em poesia? Ou seja, fazendo algo paralelo a uma écfrase?
No meu caso, sei que a pinturas e outras obras de artes, aqui e ali, viraram poemas em minhas mãos. Como, não sei.
Mas aí estão. Vejam só a emoção que dá ver pintura e poesia lado a lado.
Nem todas as pinturas que amo transformei em poesia. Amo muitas, e muitos pintores. Por exemplo, os americanos Hopper, Rothko e Pollock: alguns daqueles que fizeram o centro do mundo da arte se mudar de Paris para Nova Iorque.
Não fui eu que escolhi as obras “ecfrasadas”. Elas é que me escolheram.
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Ofereço-as a vocês, leitores, com a mesma emoção que Fra Angelico sentia ao pintar afrescos nas diminutas celas de seus irmãos frades.
E dedico esse livro aos meus maiores amigos, com quem desfrutei em Nova Iorque poesia e pintura: Jon, o poeta e Althea, a pintora.